Em 2004 o Sampa Bikers realizou sua primeira no Deserto do Atacama, no Chile. Paulo de Tarso (Presidente do Sampa Bikers) e Renata Falzoni (Bike É Legal) relatam essa primeira ciclo aventura por essa paisagem, repleta de pedras e areia, durante seis dias de pedal por um dos lugares mais sensacionais do planeta e que ficou marcado para sempre em suas memórias e de todos outros ciclistas do clube que participaram das cicloviagens seguintes.
O deserto é um local que contamina, apavora e revela. No deserto, o jogo de luzes e sombras nos transporta a um outro universo, onde os sonhos são tão acessíveis quanto às miragens. Em metamorfoses e contrastes, lentidão e leveza, ritmo e silêncio, grandeza e voluptuosidade, o deserto resume o essencial da vida.
O Deserto do Atacama ocupa uma estreita faixa de terra entre o Oceano Pacífico e a Cordilheira dos Andes e se estende do sul do Peru ao norte do Chile. Situado à cerca de 3.000 metros altitude, o que torna seu ar rarefeito, é um dos lugares mais secos do planeta Em algumas localidades não chove há mais de trinta anos. Com uma rede hidrográfica pouco densa, a região é pontilhada por vulcões e lagoas e está quase sempre coberta por uma bruma espessa e salgada. A escassa vegetação que conseguiu se fixar nesse ambiente quase estéril possui mecanismos para aproveitar a pouca umidade do ar, o que explica a existência de várias espécies de cactáceas, que fazem lembrar as bromélias típicas da mata Atlântica, que se encontram dispersas, sobretudo pelas áreas mais abrigadas dos ventos.
A beleza da paisagem, os curiosos salares (depósitos naturais de sal) e gêisers de água quente atraem turistas do mundo inteiro para esse deserto sul-americano.
O Deserto do Atacama não se parece com nenhum outro deserto. O traço suave das dunas de areia esculpidas pelo vento é obra rara. Permanece a natureza violenta, provocando terremotos, erupções vulcânicas, cinzelando na terra dura e ressequida imensos planaltos, salinas, desfiladeiros e quebradas.
Nosso ponto de chegada é a cidade de Calama, situada ao norte do Chile. O avião pousa no pequeno aeroporto e o deserto se apresenta sem subterfúgios, em toda sua imensidão estéril. A mais povoada cidade do deserto do Atacama, com aproximadamente 120 mil habitantes, Calama se desenvolveu por abrigar ricas jazidas de cobre, nitrato de sódio, lítio e salitre, entre outros recursos naturais. Chuquicamata, o coração de cobre no deserto e a maior mina a céu aberto no mundo empregam cerca de 60% da população local. Para quem assistiu ao filme Diários de Motocicleta , de Walter Salles, é nesta mina que Che Guevara discute com um capataz que recruta mão-de-obra e atira pedras em seu caminhão.
De lá seguimos de carro até San Pedro de Atacama, onde ficamos durante três dias.
Situada a 2440 metros acima do nível do mar, San Pedro é um verdadeiro oásis. O verde que a cerca é fruto do sistema de canais que sai do centro da cidade e se estende pelas ruelas. A cidade foi construída na desembocadura do Rio Grande, o maior entre os raros rios do altiplano, mas que morre no salar sem atravessar a cordilheira do Domeiko. A localização estratégica fez florescer neste lugar a cultura dos atacamenhos, cujos ancestrais chegaram à região há mais de 11 mil anos, embora as primeiras aldeias tenham surgido há três mil anos.
Por ser o coração da cultura atacamenha e importante centro incaico, San Pedro é considerada a capital antropológica e arqueológica do Atacama. Composta por um cenário monocromático de ruelas de chão batido e casas de adobe, tudo com cor e odor de terra, guarda importantes construções históricas. A praça central é marcada por uma majestosa igreja do início do século XVII, feita de adobe caiada, com piso de algarrobo e teto de tábuas do quase extinto cacto gigante.
A pequena e agitada rua Caracoles, também toda de terra, é o point de circulação de turistas do mundo inteiro. Restaurantes, bares, lojinhas, mercado e o agito dos jovens dão charme a essa pequena cidade no coração do deserto.
As pedaladas
Primeiro dia – Pedalamos em direção as Lagunas del Salar de Atacama, formado por três mil quilômetros quadrados de depósitos de sais. A uma altitude de 2300 metros, constitui-se na maior reserva mundial de lítio, além da presença de potássio, bórax e outros minerais. Sob a crosta de sal, há um imenso lago de água salobra, que aparece na superfície em forma de lagunas.
Seguimos por uma estrada de terra raspada, coberta de cascalho, confundindo-se com a imensidão arenosa. Dentre as muitas montanhas avistadas por nós, uma das mais altas é na realidade um vulcão, o Lincancabur. Os seus 5916 metros de altitude separam o Chile da Bolívia. A paisagem encanta.
Percorridos pouco mais de quinze quilômetros chegamos a primeira laguna. No coração do maior salar chileno, a natureza promove um dos seus milagres. Aqui, onde a umidade relativa do ar é praticamente zero, nas margens da laguna Chaxa, os flamingos rosados fazem seus ninhos para depois migrar em direção às lagunas mais frias do altiplano andino. Durante o percurso é possível avistar algumas lagunas antes de atingir nossa próxima parada: duas pequenas lagunas em forma de cratera. Ali fizemos uma longa pausa para um lanche e um mergulho em suas águas geladas. Nesse dia pedalamos 70 quilômetros, o mais longo trajeto de nossa expedição.
Segundo dia : Saímos de San Pedro seguindo rumo a Pukará Quitor (Pukará significa fortaleza) não longe dali, 3 km ao norte, seguindo o rio. Construída toda em pedra, a fortaleza do século XI conta à história da resistência dos atacamenhos até serem derrotados pelos incas em 1450, que por sua vez foram rendidos pelos espanhóis. Sua localização estratégica, como de todos outros Pukarás, tem uma vista panorâmica de toda região. De lá seguimos subindo o Rio San Pedro até atingir, 5 km rio acima, Catarpe, as ruínas do centro administrativo incaico. Continuamos por uma antiga e íngreme estrada abandonada para atravessar a Cordillera de la Sal por um túnel construído em 1930. A subida faz o coração começar a bater em descompasso, os pulmões ficam ressequidos, em alguns momentos começamos a sentir tonturas, mas tudo isso é recompensado pela deslumbrante paisagem. Do outro lado do túnel começamos a descer e a paisagem vai ficando ainda mais bonita, imensas rochas dando um colorido que até então eu desconhecia. Só para ter idéia da beleza do lugar, percorremos 10 quilômetros em 3 horas, não pela dificuldade, mas sim devido às paradas para fotografar, filmar, admirar. Passado este trecho, no meio do nada, estava lá nosso caminhão de apoio, que havia seguido por outro caminho, a espera do grupo. Neste dia, para nossa surpresa, o almoço foi arroz com feijão preto.
Após a siesta, onde cada um disputava um lugar à sobra, seguimos pedalando para o Valle de La Luna. Próximo à entrada do Vale, uma subida e ao nosso lado direito nosso primeiro contato visual com uma imensa duna de areia. Palavras, fotos ou filmes não são capazes de descrever o que sentimos ao admirar a beleza dessa dádiva da natureza. É simplesmente lindo!
No Valle de La Luna só há pedra e cristais de sais. Nada respira, não há plantas ou animais. Uma paisagem lunar, como indica seu nome. Mesmo diante dos pequenos oásis, onde estão agrupadas as maiores vilas do deserto, a sensação é de estarmos em outro planeta. Ao alvorecer, próximo à duna, um movimento grande de turistas, estacionando seus carros ou bicicletas, para então subira duna e buscar um ponto estratégico em cima da rocha para assistir um dos maiores shows da natureza: o por do Sol. Após escutarmos instruções do guarda parque, seguimos para o lado oposto, em cima de uma outra rocha, com vista de 360° de toda região.
Após o por do sol, down Hill na duna.Pedalamos um pouco no escuro até chegarmos novamente em nosso caminhão de apoio que nos esperava para um gostoso coquetel regado a vinho e queijo, com direito a um show pirotécnico de nossa guia malabaris, tudo isso sob um céu dos mais estrelados e bonitos que já vi. Foi um dos melhores dias de minha vida! Ao total, p ercorremos 27 quilômetros .
Terceiro dia – O terceiro dia, foi o mais tranqüilo de toda nossa expedição. Pedalamos apenas 16 quilômetros, pois seria nosso último dia na simpática San Pedro. Seguimos 6 quilômetros pelo asfalto até o Mirador Cordilleira de la Sal, um mirante com linda vista de parte da região. Saímos do asfalto, seguimos por uma estradinha de terra. De repente nossos olhos eram premiados com mais uma vista magnífica, estávamos de frente para o Valle de la Muerte. Mais uma paisagem lunar. Parecíamos estar assistindo a um filme de ficção, tamanha a beleza do lugar. No fim da arenosa descida, um grupo de turistas descia duna abaixo com suas pequenas pranchas. O Sandboard é um dos esportes radicais mais praticados no deserto.
Após o almoço, tarde livre para explorar a cidade. Várias lojas e uma pequena feira de artesanatos. Mas a visita ao Museu Arqueológico Padre Gustave Lê Paige, que guarda um dos maiores acervos da cultura pré-colombiana no Chile, é visita mais do que obrigatória. Um mergulho em mais de 2000 anos de história.
Quarto dia – Três horas da manhã, malas prontas, caminhão carregado, deixamos San Pedro do Atacama para trás e seguimos de carro em uma viagem que durou três horas até o gêiser el Tatio- um festival de erupção de águas vulcânicas, foi possível até se banhar em suas águas termais. Visita feita, seguimos de carro até o ponto de início de nossa pedalada, a 4.800 metros de altitude, em torno da Cuesta de la Chita. Pedalar por um deserto situado em grande altitude foi uma experiência fabulosa. Em alguns momentos tentávamos pedalar forte, mas em razão da menor quantidade de ar o fôlego começava a falhar e sentíamos dores de cabeça, uma sensação bastante estranha. – Ainda bem que nesse momento tínhamos uma descida pela frente, e que descida!
Após 38 quilômetros chegamos em Caspana, um verdadeiro oásis encravado em um cânion a 3260 metros de altitude. Impressionante! Com uma população de pouco mais de 400 habitantes, o charmoso povoado é uma aldeia de agricultores e pastores que abastece a cidade de Calama de verduras e legumes. Neste dia ficamos acampados bem no meio da cidade. À noite sofremos com o frio, e que frio! Algo em torno de 5 graus abaixo de zero. E na hora de recuperar as energias gastas, só mesmo uma autêntica patasca, cozido de legumes com choclos (milho do altiplano) e carne.
Quinto dia – De Caspana seguimos por uma estrada interditada entre um cânion, junto ao Rio Salado. Os dez primeiros quilômetros, apesar de muito duros, devido às subidas e muitas pedras, foram com certeza os mais bonitos de toda a viagem. Após 20 quilômetros, chegamos em Ayquina, um fantástico povoado às margens do rio Salado. Logo na entrada do vilarejo uma placa o número de habitantes: 50! Um povoado bastante curioso parecia até uma cidade abandonada. As construções parecem obras de um engenheiro maluco, com casas construídas uma quase sobre a outra. Lá nossa equipe de apoio preparou, tranqüilamente em frente à igreja localizada na praça principal um gostoso almoço.
Nos dias 7 e 8 de setembro (quando foi encontrada a imagem da, virgem de Guadalupe) e no dia 12 de dezembro (data oficial de Nossa Senhora de Guadalupe), Ayquina retira os cadeados das portas e se enfeita de flores para receber mais de 1500 romeiros de todo o deserto. Promessas pagas, pedidos feitos, a vila e a virgem voltam a mergulhar na paz do abandono. De lá pedalamos mais 8 quilômetros até o local de nosso acampamento, nas imediações do Pukará de Turi.
Sexto dia: No último dia de pedal, a estrada se insinuava pelo deserto à nossa frente. Foram 50 quilômetros por caminho ermo em direção às cordilheiras, repleto de fortalezas do Século XII. O dia mais difícil de nossa expedição, quando o deserto realmente mostrou sua cara. Estávamos no Salar de Turi, avistamos até uns flamingos! Justo o que faltava para completar nossa viagem.
Um retão que parecia não ter fim. Terra e pedra, pedra e terra. O relevo quase não variava, a não ser por alguns pequenos declives e pequenos montes. O vento contra exigia muito dos músculos de nossas pernas que “queimavam”.Lá longe, 30 quilômetros adiante, avistávamos algumas árvores no horizonte, nosso ponto de encontro. Parecia até uma miragem, pois não chegava nunca. Depois de muito sofrimento conseguimos atingir as árvores e o grupo, cansado e desanimado, talvez pela paisagem monótona percorrida até então, buscava consolo em suas sombras. . Readquiridas as forças fomos para o Paso Del Diablo onde enchemos nossos olhos com uma linda vista do Pukará de Lazana. Após o almoço seguimos pela estrada que acompanhava o Cânion Del Loa, às margens do rio de mesmo nome, o maior do Chile em extensão (440 km) e o único curso que nasce nos Andes e consegue atravessar todo o deserto de Atacama, para desaguar no Pacífico. Próximo a sua nascente o Loa é apenas um riacho de menos de um metro de largura, irrigando lavouras da pequena população local –menos de 150 habitantes. Pelo lugar passava o Camiño Del Inca, que cortou todo o norte chileno, interligando-o ao Peru e a Bolívia.
Chiu-Chiu, final de nossa expedição sobre duas rodas pelo deserto mais seco do planeta, o Atacama.
O Sampa Bikers promove esta viagem somente para grupos fechados de no mínimo 8 pessoas e máximo 12. Informações entre em contato pelo email [email protected] ou pelo telefone 11 5517 7733